Vida de VIOLEIRO ou difícil arte de sobreviver
O fabrico manual de instrumentos musicais é uma
arte em vias de desaparecer. A escolha das madeiras, a talha do objecto ou o pincelar do verniz são passos de um ritual a
que cada vez mais se torna difícil assistir. O processo mecânico veio, também aqui, substituir a experiência de mãos calejadas
no ofício. O que se segue é de uma conversa com um dos últimos mestres violeiros do país. António Luciano - ou mestre Toni,
como respeitosamente lhe chamam os alunos - começou a aprender o ofício de violeiro aos nove anos, com o avô. Uma actividade
à qual se dedicou por 'inclinação natural', onde os segredos que habitualmente se lhe associam não passam de um mito. 'O verdadeiro
segredo está na sensibilidade de cada artesão', diz. Mas atenção: um artesão não é alguém que faz 'duma caixa de madeira um
pseudo-instrumento', mas sim aquele que fabrica peças com qualidade suficiente para permitir um bom desempenho a qualquer
músico. Com 50 anos, é hoje um dos últimos violeiros tradicionais do país. A nível nacional existe apenas um artista mais
novo, que vive e trabalha em Braga. Os restantes - muito poucos - são todos mais velhos e muito dificilmente poderão transmitir
os seus conhecimentos aos jovens. Mas estes, ao contrário do que desejaria, não vêem no ofício um meio de subsistência suficientemente
atraente para nele investir. 'Quem se dedica ao fabrico de intrumentos musicais fá-lo normalmente por amor à arte ou enquanto
passatempo. Mas isso, por si só, não chega para garantir a sua continuidade. É fundamental reabilitá-la em termos profissionais'. Foi
exactamente com o intuito de recuperar e profissionalizar a tradição, que a Fundação para o Desenvolvimento da Zona Histórica
da Sé, no Porto, organizou um curso de construção de instrumentos populares de cordas, convidando-o para ministrar as aulas. Quando
se iniciou, em Outubro do ano passado, 'as pessoas mal sabiam serrar ou pregar'. Hoje, diz com evidente orgulho, já são capazes
de construir um cavaquinho ou uma braguesa e, dentro em breve, aprenderão as técnicas de construção do banjelim e do bandolim.
As perspectivas parecem animadoras, já que espera obter um aproveitamento de metade dos dez alunos inscritos, uma média que
considera 'extremamente positiva'. Quanto à inserção no mercado de trabalho, diz que tudo dependerá do 'interesse e determinação'
dos seus alunos. Outra das possíveis saídas profissionais passa pelo restauro.
Os truques da madeira
A escolha dos materiais tem uma influência decisiva
na qualidade de qualquer instrumento musical, seja ele cordofone ou não. No caso das peças de cordas, eles podem ser feitos
em Nogueira, Tília ou pau preto, entre outras madeiras, a partir das quais se obtém diferentes sonoridades. Utilizando
o pau preto, por exemplo, obtém-se um som mais rico e melodioso, ao passo que a Nogueira ou o Amieiro produzem um som mais
agressivo e 'gaiteiro'. Para o tampo, utiliza-se Tília ou pinho flandres. Esta madeira, bastante vibrátil, propaga o som de
forma rápida e contínua. O ideal, diz António Luciano, será mesmo o pau preto e o pinho flandres, que, no entanto, obrigam
a um custo final oneroso por serem materiais extremamente caros. O preço de um instrumento manufacturado pode variar, assim,
consoante o fabricante e os pormenores de acabamento. A madrepérola, por exemplo, é um elemento de ornamentação que pode elevar
o custo de um cavaquinho a 70 ou 80 contos. O grosso dos instrumentos musicais à venda no mercado são feitos industrialmente.
Em alguns casos, podem produzir um som tão puro como o de um manufacturado, mas existem diferenças evidentes que valorizam
este último: o facto da madeira ser maciça, e não contraplacada ou folheada, prolonga o tempo de duração e, se bem preservado,
pode durar uma vida. Além disso, o facto de ser um trabalho manual valoriza-o comercialmente. Torna-se difícil avaliar
o grau de perfeição de cada trabalho. Apesar de serem executados segundo a mesma técnica e em condições muito semelhantes,
eles constituem-se como peças únicas. Cada artista, explica mestre Toni, tem uma sensibilidade auditiva particular e é a ele
que caberá avaliar as potencialidades do instrumento musical. Meio a brincar, meio a sério, diz que quando se juntam músicos
num mesmo espaço, cada um dirá, muito provavelmente, que o dele 'é sempre ligeiramente melhor que os outros'. Para construir
um cordofone de qualidade é necessário observar determinadas regras: a madeira deve estar bem seca, ser talhada por igual,
respeitar-se os tempos de colagem e ser correctamente envernizada. O verniz, aliás, é tão importante para a preservação da
madeira como para o seu embelezamento. As madeiras mais nobres são importadas da Alemanha e do Brasil, mas em Portugal pode
igualmente encontrar-se boa matéria prima. O tempo dispendido na construção pode variar significativamente. Mesmo para
um violeiro com bastante experiência, um instrumento como o cavaquinho pode demorar entre oito e quinze horas a ser fabricado.
Mas nunca em séries muito alargadas, porque 'a quantidade é inimiga da perfeição'.
Ricardo Jorge Costa
|