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TONI DAS VIOLAS

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Antônio Fernando Couto

Identificação

O meu nome é Antônio Luciano. Nasci a 11 de Junho de 1948, na Rua da Banharia, Sé, por sinal uma rua muito conceituada em termos de violeiros já no século passado. Éramos três irmãos, um faleceu cedo na tropa, um outro que é o mais novo, do segundo casamento da minha mãe, é um autodidacta, bom músico que agora está no desemprego.

Infância

Aos 12 anos fiquei sem pai. A minha mãe é que sustentava a casa só com um ordenado, por isso, tivemos que fazer bastantes sacrifícios. Apesar que eu nessa altura já ganhava algum, mas era muito pouco. Com nove anos de idade, no ano de 1957, o meu avô, que era violeiro, levou-me para a banca para trabalhar com ele. Culturalmente tive uma boa infância, financeiramente nem tanto, mas as coisas arranjaram-se. Brinquei muito quando era miúdo, ao peão, à macaca, jogávamos futebol de rua e fazíamos bastantes peças de teatro no Centro Social de Santana. As instalações ficavam ao lado da Igreja de São Lourenço, que é a igreja dos Grilos. Fazíamos bastantes peças muito bonitas e incomodas para a altura.

Uma vez, pelo menos, tivemos que alterar muitas partes do texto. A peça de teatro chamava-se "Eu não sou Judas", e numa das situações o indivíduo não se baixava, tinha que dizer o que sentia, portanto, não era um 'lambe-botas'. Tudo isto era muito implícito no texto, com as palavras certas, chamando-se os bois pelos nomes. Só que tudo passava pela censura, mesmo nestas questões pequeninas. Houve frases que fomos obrigados a cortar.

"Comecei a levar as primeiras arraiadas na praça"

Educação, Escola Infante Dom Henrique

Nos estudos, consegui tirar um curso de carpintaria cívil na Escola D. Infante Henrique, fiz até ao 5º ano. Quando andava a estudar, comecei a levar as primeiras arraiadas na praça. Nesse tempo, os empregados têxteis faziam o primeiro de Maio e o 31 de Janeiro, isto em 66/67. Eu vinha da escola do Infante e vinha pela Rua da Fábrica abaixo e estava lá um burburinho do costume. A polícia cercou aquilo e eu levei uma verduada sem ter culpa nenhuma. A partir daí, até por uma questão de birra, sempre que havia alguma manifestação lá estava eu. No ano seguinte, os estudantes de Engenharia, que foram sempre uma das maltas mais vanguardistas, mudaram a placa que tinha na Rua 31 de Janeiro que dizia "Santo Antônio", por outra que dizia "31 de Janeiro". A polícia apareceu logo e arreou sem jeito. Eu lembro-me, porque me juntei a uma malta e fomos para o cimo da pedreira, na Avenida da Ponte, que agora não existe, e todas as vezes que a polícia passava, a gente atirava pedras. Depois apareceu a minha mulher e eu acabei os estudos.

Por acaso, em termos de namoros isso foi mesmo tiro e queda. Tive aqueles namoricos de miúdos, não é, que isso não conta para o calendário. Quando conheci a minha mulher ainda andava na escola, tinha uns 18 anos e ela 17. Passado meia dúzia de meses casamos.

"As pessoas eram muito afáveis"

Tropa em Timor,

Depois fui para a tropa, para Timor, e ela ficou já com uma filha. Tive em Timor durante dois anos, na década de 70, por sinal ainda contatei bem de perto com Gusmão, ainda tenho um certo gosto por aquilo. Certo dia resolvemos fazer um jogo de futebol com uma comunidade chinesa que estava lá. No calor do jogo, um indivíduo insultou-me em chinês, eu percebi e respondi-lhe à letra, só que como eu era militar e o delegado ao jogo também, acabou por participar de mim. Por acaso não deu em nada, aquilo acabou tudo em bem, só levei uma repreensão, isso foi o lado mais negativo e curioso. Agora dos lados positivos, era a confraternização dos militares com os timorenses. Eu estava num centro de instrução, dávamos instrução aos locais e as pessoas eram muito afáveis, muito boas e bem patriotas. Foi pena a gente deixar aquilo, enfim, outros interesses, outras histórias que não contam.

Oficio: violeiro

Quando acabei a tropa retomei a profissão dos instrumentos. O meu avô já tinha, entretanto, falecido, e eu comecei a trabalhar para a casa "Antônio Duarte". Isto há 42 anos. A Casa Antônio Duarte Empresas, Rua Mouzinho da Silveira

A Casa Antônio Duarte nasce na Banharia em 1870 com o Antônio Duarte, depois vai para a Ponte Nova, já sob a orientação do filho, Antônio Carvalho. Nessa altura acaba a fábrica com as 40 pessoas, ficaram apenas duas ou três. Daí mudam para a Rua Mouzinho da Silveira, onde o neto, Manuel Duarte assume os destinos da casa que já não contava com muitos funcionários porque muitos dos trabalhadores foram trabalhar para casa por conta deles. Quando chego de Timor, em 1972, já começo na oficina, na rua Mouzinho da Silveira, portanto, já não apanho a fase de grande indústria que foi a empresa. Depois a esposa do neto, a dona Rosa Duarte após o falecimento do marido, continuou com o negócio, à cerca de 12 anos aposentou-se e vendeu a casa «Antônio Duarte» à «Casa Castanheira».

O meu avô começou a trabalhar na Casa Antônio Duarte e eu, através do meu avô, integrei-me aqui e cá estou e estarei. Claro que, eu gostaria mais de trabalhar num sítio onde pudesse, sozinho e sem pressões, criar as minhas obras.

"Ia vendo, ia fazendo"

Processo de aprendizagem,

Quando comecei a trabalhar não havia muitas casas a fabricar instrumentos, as únicas que se dedicavam ao fabrico, no século passado era o Melo, o Duarte, os Sevilhanos e o Antônio Pinto, todas elas sediadas na Rua da Banharia. Eram pessoas de bastante idade que começaram a morrer e ninguém mais continuou com a arte. Também é curioso, que os antigos artistas tinham um certo receio de ensinar, talvez com medo da concorrência ou para defender os segredos da construção. Eu senti isso quando acompanhava o meu avô. Ele não me ensinava propriamente, eu é que ia vendo, ia fazendo, aperfeiçoando, arranjando novas técnicas. Também era um bocado difícil ensinar uma pessoa que não ganhasse para ela própria.

Na indústria e no comércio mete-se um empregado para obter lucro e não para estar a empatar nele. Agora é diferente, há estas possibilidades do fundo europeu, o Instituto do Trabalho e Emprego, que faz esses cursos. Foi o que aconteceu há dois anos com a Fundação para o Desenvolvimento da Zona Histórica, juntamente com o Instituto de Trabalho e Emprego, que resolveram fazer um curso sobre o fabrico de instrumentos musicais de corda. Contataram-me e eu "Sim senhor, vamos a isso". Durante um ano, transmiti todos os ensinamentos a dez alunos. Agora estamos a acompanhar uma moça que irá possivelmente, começar a trabalhar por conta própria.

O que eu gostava era de deixar esta arte a alguém da minha família, mas não é muito viável. Esta ainda é uma arte de difícil aprendizagem, onde ainda há regras. Um instrumento para ser bem feito tem que obedecer a certas regras. Depois o que podemos fazer é alterações pontuais segundo o que o cliente pede, segundo a maneira do cliente tocar e a forma como ele digita. Há pessoas que tocam o instrumento mais baixinho ou as cordas mais altas, ou a escala mais larga ou mais direita, isso são condicionalismos que se põe às regras gerais do fabrico dos instrumentos.

Para se construir uma viola não é obrigatório ter noções de música, mas é importante que se tenha. Quando o instrumento está acabado eu tenho que experimentar a ver se afina, se tem bom som. Se tiver algumas noções de música é melhor, até porque, às vezes, há um cliente ou outro que diz que não está bem e a gente tem que saber e ter bases para dizer "Não desculpe, mas está bem". Mas se não souber, pode construir na mesma, mas fica em desvantagem perante o cliente.

" A bonequinha de pano"

Processo de fabrico de uma viola,

O processo de fabrico de uma viola é um bocado complicado. No princípio, pega-se na madeira para as azilhargas e para o fundo e desingrossa-se até atingir uma espessura de 2/2,5 mm. Para o fundo e para as azilhargas pode-se utilizar a madeira da nogueira, pau-preto e mogno. Se for para o tampo, pode ser pinho Flandres ou a tília, para o braço pode ser cedro ou mogno. Temos um chaço, recortamos o feitio do braço, fica sempre em bruto, depois disto temos uma forma, vergam-se as azilhargas ao calor, metem-se as azilhargas na forma onde já está o braço, depois faz-se o desempeno das azilhargas e cola-se umas sanefinhas no interior, umas travessas, para se colar o fundo por cima. Quando o fundo está colado tira-se a forma fora, sai por cima e repete-se o trabalho que se fez no fundo, que é pôr as sanefinhas, pôr as travessas nos seus sítios com os abalados certos. Posteriormente, pega-se no tampo, abre-se a boca, mete-se os embutidos e cola-se. Depois aquilo é tudo aparado para se poder meter os embutidos no tampo, prepara-se a escala e cola-se, depois pontea-se a escala, isto é, faz-se as marcação dos pontos. Mete-se os pontos, há quem lhe chame trastes eu prefiro chamar pontos, e depois são os acabamentos: raspar, lixar, limar as madeiras que estão a mais, talhar as cabeças, até que se chega ao envernizamento, que é feito à broa, à mão. Todo este trabalho é feito por mim. Inclusive o verniz, ainda opto pelo verniz antigo que é a goma, laca e o álcool com a pedra-pomes. Com uma bonequinha em pano anda-se ali até ficar encascado. Não utilizo este tipo de vernizes que são poliesters e são aplicados à pistola.

Eu faço qualquer tipo de instrumentos, às vezes não os faço aqui na loja, mas em casa onde tenho uma pequena oficina. O período de construção de um instrumento depende do estilo do instrumento. Se for, uma viola especial, normalmente demoro um mês, mas não passo o tempo todo a trabalhar nela, porque aparecem sempre colagens para fazer. De uma maneira geral faço todos os instrumentos, claro que o que faço já é uma gama alta, não faço estes cavaquinhos nem burguesas. Construo violões para o fado, as guitarras, às vezes faço algumas reposições. Por exemplo, acabei de fazer uma guitarra do Porto, do fim do século através de uma fotografia. As coisas corriqueiras propriamente ditas temos pessoas, fábricas que fazem isso, não há necessidade de estar a perder tempo com essas questões.

Em relação aos clientes tenho de tudo, desde o indivíduo que toca no rancho folclórico ou que toca nas tunas ou que é profissional de fado ou profissional de música ligeira, de uma maneira geral é toda a gente. Ao longo destes anos nota-se uma evolução positiva da procura, devido ao vitalizar das tunas acadêmicas, aos grupos folclóricos, e aos grupos de música popular portuguesa que têm vindo a aumentar.

"Há uma ligação muito própria de quem faz com o que faz"

Apego às obras,

Há coisas que me dão extremamente gozo fazer. Estou a lembrar-me de um emigrante que foi para França e pediu-me para fazer uma guitarra de fado. Passado algum tempo veio buscar a guitarra e foi-se embora. Uma das coisas que mais me custou foi vender essa guitarra, preferia ter ficado com ela. Depois de fazer o instrumento, há uma ligação muito própria de quem faz com o que faz. O emigrante vem cá longe a longe, para eu matar saudades da guitarra. Dá-me um certo gozo pegar a madeira em bruto, começar a talhar e a ver as coisas a nascer.

Os mesmos instrumentos que o avô usava

Instrumentos,

As guitarras que eu faço em pau preto, com pinfelantes, para um profissional custam à volta de 250 a 270 contos. Na produção destas obras, utilizo os mesmos instrumentos que o meu avô usava, a única inovação foi a introdução de uma máquina de furar elétrica. As ferramentas, nesta arte, são um bocado inventadas. Para além dos formões, das palhetas, nós temos uma faca própria que não se encontra no mercado, temos um plaina, temos um farol que é onde se vergam as ilhargas.

Esta é uma profissão muito enraizada na Sé, na zona da Banharia, de Pena Ventoso. Temos algo escrito que nos diz que desde 1770 apareceu um tal sevilhano que era um grande mestre de fabrico de instrumentos. Nessa altura, havia cerca de dez, doze pessoas a fabricar, isso depois veio a decrescer.

"As pessoas juntavam-se na rua"

Recordações da Sé,

Em tempos, chamavam à Sé a zona degradada, mas eu preferia chamar-lhe um "gueto", que as autoridades tinham interesse em manter assim, para ter determinadas pessoas arrumadas. A Sé estava superlotada de pessoas, um quarto servia de abrigo a um casal com cinco filhos. Todas as pessoas que vinham de fora para o Porto, em busca de melhores condições de vida, eram empurradas para a Sé ou para a Ribeira. As pessoas vinham trabalhar nos serviços, carrejões, carregamentos como havia lá em baixo na Ribeira, recados e comércio. Infelizmente, havia muita gente que acabava na prostituição, principalmente, moças que vinham de fora, às vezes enganadas, às vezes escorraçadas. Existiam os adueiros, que eram aquelas casas que vendem roupas mais baratas, os sapateiros, os barbeiros, os violeiros, um ou dois tascos e as casas de pasto. Também andavam aquelas pessoas a vender pelas ruas, a pregoar. Havia uma senhora que vendia castanhas, com aqueles fogareiros antigos, em ferro.

Na Sé, também havia as cegadas, as pessoas juntavam-se na rua, com um violão, uma cantadeira, um violino e cantavam aquelas canções de cordel, que se vendia até nuns perpetuzinhos que contavam a desgraça alheia, da mulherzinha que morreu, que matou o marido e fugiu. Isso era das coisas mais típicas aqui da Sé, assim como o Quiosque do Barbas. Um quiosque muito antigo, que ficava ao cimo da Rua Escura e cujo telhado terminava em capela e não em cone. Chamava-se quiosque das Barbas, porque o dono tinha umas imponentes barbas brancas. Outra personagem muito típica era o Carlinhos da Sé, um homossexual muito amigo do seu amigo, ajudava muita gente. Costumava-se dizer que era o pai das prostitutas porque ele defendia-as e apoiava-as em tudo. Ele tinha uma grande capacidade de se saber impor, ele dava a cara, não tinha problemas, se tinha de dar um palavrão a alguém, que por qualquer motivo pegasse com ele, dava e acabou, não tinha problemas. O Carlinhos da Sé já faleceu há mais de 20 anos.

Triste, soturna e Húmida"

Ribeira,

Quando era miúdo, a Ribeira era triste, soturna e úmida. Triste porque as pessoas viviam do seu trabalho e viviam mal. Úmida porque os prédios eram bastante degradados e mostravam escurrências. Contudo, a Ribeira nunca deixou de ser um ponto de muita azáfama, de muita vivência, porque no cais paravam muitos barcos que traziam o sal e o carvão. As coisas que eu mais admirava na Ribeira era o Duque e os barcos rabelos. O Duque da Ribeira era um homem com extrema simplicidade que andava no caíque lá com aquele apetrecho de corda e arame para tirar às vezes algum cadáver do rio. Os barcos rabelos traziam o vinho e as lavadeiras transportavam à cabeça grandes montes de roupa. Elas vinham às cidades e as pessoas davam-lhes a roupa. Elas lavavam e depois cobravam por isso.

Depoimento de António Fernando Couto Luciano
Entrevistado por Patrícia Sousa, Lígia Costa e Sónia Moreira
São Paulo, 19 de Novembro de 1999

tonidasviolas@gmail.com

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